No discurso de Annie Ernaux na ocasião da premiação do Nobel de Literatura, ela disse que escreve para vingar sua raça, pois bem, eu escrevo para vingar meu sangue.
Era uma menina, sábado a tarde deitada na rede, quando levantou viu que a rede estava suja de sangue, baixou as calcinhas e viu que o sangue escorria dela.
Que nojo! Quer dizer, fiquei mocinha! Depois de colocar o absorvente, pensou como iria viver dali pra frente com esse bastão de algodão, intruso e incômodo entre as pernas. Ligou a TV viu no programa do Chacrinha, as Chacretes de fio dental e pensou: Certeza que Cleo Toda Pura, Rita Cadilac, India Potira, Gracinha Portelão ainda não tinham ficado mocinhas, caso contrario, nunca usariam aquele maiô fio dental, vai que.... Sentiu inveja delas.
Lembrou-se das amigas que já haviam menstruado, contavam na hora do recreio, no pátio da escola, que as mães tinham conversado com elas e era normal, era uma transição esperada para aquela fase.
Normal, pensou ela. Quando o absorvente encharcou, simplesmente jogou na lixeira do banheiro.
A mãe, com todo ou sem repertório gritou do banheiro: Vem aqui!!!! Ela se apressou pensando que algo muito grave tinha acontecido. - Veja sua porca, sua imunda, olha isso! Você tem que embrulhar antes de jogar, você é uma vergonha! Puta! Puta!
Ela chorou, não entendeu, por que para as amigas era normal, e para ela era sinal de algo podre, vergonhoso, libidinoso, fétido, algo pra se esconder. Afinal nunca havia tido essa conversa com a mãe.
Não era a menarca uma transição, o Bat Mitsvá, um sinal de que o amor daquela mãe fora abençoado?
Pra ela não, cresceu se sentindo menor.
Aos dezoito anos perdeu a virgindade com um cara bem escroto, boy lixo como dizem as meninas, enfim penetrou, o sangue escorreu: - Tá de Chico? - Não, respondeu ela. Então tirei seu cabaço.
Aquele sujeito grosso, mal educado, insensível, só confirmou a sentença de sua mãe: O sangue dela era banal.
Transição.
O sangue se ausentou na espera dos filhos, quando eles chegaram novamente jorrou.
Outra transição.
Hoje o sangue não escorre mais entre as pernas, a derradeira transição.
Escrevo para vingar meu sangue.
E viva o nosso sangue!!!